quinta-feira, fevereiro 05, 2004

O Parque Dos Horrores




Ataque Viking

Para continuar a saga, é necessário que eu faça uma introdução explicativa: Edmund ia com a família Bonaparte, desde o início de sua baixa infância, à essa cidade litorânea. Ficavam sempre (ou quase sempre) na mesma casa, durante mais ou menos um mês no verão e ele tem aquele lugar registrado em sua memória afetiva.

Tudo naquela cidade lembra a sua infância e todas as vezes que ele vai lá tem que repetir algumas coisas que fazia enquanto ainda era um Edmundinho. Uma dessas coisas é ir ao parque de diversões. Não, não sabia que Edmund era chegado nessas fortes emoções e não, não me divirto nem um pouco nesses lugares, para mim aquilo era o parque dos horrores.

Mas Edmund fez parecer uma espécie de "ritual de iniciação" ou uma prova à qual eu deveria me submeter para confirmar que realmente fomos feitos um para o outro. Me vi ali compelida a dar tamanha demonstração de coragem. Achava que apenas não gostava de parques de diversão, que não achava graça nenhuma, mas jamais imaginei que pudesse vislumbrar a face da morte naquele lugar.

A última vez em que tinha ido a um parque de diversões eu devia ter uns dezessete anos. Realmente eu gostava (não tanto quanto Edmund, mas ia por minha livre e espontânea vontade), até que passei a ter estranhos pensamentos quando entrava naqueles brinquedos. Pensando agora me lembro desses tais pensamentos terem sido estimulados por alguém da minha família. Não sei se minha mãe ou minha irmã, alguém apertou o botão "start" e ele nunca mais se desligou.

Quando na Montanha-Russa, imaginava a movimentação dos meus órgãos internos a cada subida, a cada descida brusca, a cada looping (apesar de nunca ter andado nessas montanhas de looping, imaginava). Quando naqueles brinquedos centrifugadores de gente eu só conseguia visualizar minhas pobres vísceras esmagadas, umas sobre as outras, em profundo desespero visceral. Com isso, muito difícil passou a ser obter alguma diversão em tão desesperadoras geringonças.

O "brinquedo" preferido de Edmund ali, no qual ele estava louco para andar (nem um pouco metaforicamente falando), e que seria palco do tal ritual de iniciação, é um objeto de tortura vulgarmente chamado de "Barco Viking", apesar de eu não ter visto nenhum Viking no local. Aliás, não havia ninguém no tal barco além de mim e do Edmund. Operando a grande alavanca, um rapaz calado e soturno, que me lembrou algum mordomo assassino de algum filme de suspense-terror que eu já vira em minha tão curta existência.

Eu, com um longo e esvoaçante vestido (a essa altura eu já tinha voltado para a pensão e trocado de roupa), me enrosquei em tudo o que encontrei pela frente até que conseguíssemos sentar. Sim, eu já tinha ido em um troço desses antes. Lembro que não achei graça nenhuma, mas sobrevivi sem maiores seqüelas e desci de lá sem grandes traumas. Edmund resolveu que sentaríamos na ponta, lá em cima, disse que era mais emocionante.

Finalmente o mordomo pôs o troço para funcionar, para quem não sabe, o tal barco é preso por dois cabos, um em cada ponta e é balançado para frente e para trás, em um movimento pendular, bastante sem graça para quem vê de fora e igualmente sem nenhuma graça para quem está lá dentro, ao menos na minha opinião.

Aos poucos a coisa foi tomando velocidade, o pêndulo (o barco) ia cada vez mais alto e eu comecei a sentir um certo desespero. Quando subíamos de costas não havia grande problema, o pior era descer de frente, do ponto mais alto e ter aquela sensação de estômago congelado que se tem quando se desce de carro brusca e rapidamente por uma ladeira.

Sempre ouvi dizer que só quem estava de estômago vazio tinha a tal sensação, por isso estava tranqüila, já que havia enchido o meu com toda a espécie de alimento disponível pelas redondezas. No entanto descobri na prática que a tal teoria é completamente equivocada.

Uma vez, duas vezes, três vezes eu até poderia agüentar, porém, mais do que isso começava a ficar complicado. Agarrei-me à barra de (in) segurança à minha frente e fechei os olhos, na esperança de que o coração (e o estômago) não sentisse o que os olhos não estavam vendo. Doce ilusão. Abri os olhos. Edmund ao meu lado, divertindo-se, feliz, alegre, rindo de minha cara de desespero, achando que eu estava brincando (para variar. Ele sempre acha isso quando estou em alguma situação-limite).

O problema não era exatamente o estômago. A partir da quarta sensação de congelamento, comecei a sentir o sangue sumir das extremidades do meu corpo. Primeiro foram as mãos, poderia jurar que estavam azuis, se eu fosse afeita a juramentos. Não sentia mais as minhas mãos, como se elas não me pertencessem. Depois foram os pés. Da mesma forma em pouco tempo não sentia mais as mãos, os pés e quase não sentia a cabeça.

Comecei a ter delírios. Na décima sensação de congelamento lembrei-me de um pesadelo recorrente: sempre estou em uma espécie de trenó ou coisa que o valha, no alto de uma montanha imensa. De repente alguém me empurra e eu tenho a tal sensação de congelamento, depois o trenó volta, de costas, passando a fazer (não me pergunte como) o tal movimento de pêndulo e eu me agarro, tranqüila: "é só me segurar que não vou cair", mas minhas mãos perdem os movimentos e não consigo mais me segurar com força, despencando do ponto mais alto da montanha para um precipício, em desespero.

De súbito era como se o tal pesadelo recorrente fosse, na verdade, uma espécie de sonho premonitório, apesar de eu não acreditar em premonições. Desesperada, senti um formigamento nas mãos e percebi que elas não seguravam mais a barra (literalmente falando).

Meus órgãos, revoltados com tamanha agressão resolveram rebelar-se. Os pulmões simplesmente recusavam-se a encher-se de ar enquanto estávamos lá em cima e o coração ameaçava parar de bater a qualquer momento. O cérebro, coitado, jogado para a frente e para trás já não entendia mais nada e mandava ordens trocadas para todo o corpo. O sangue não mais circulava em minhas veias e eu vislumbrava o fim.

Tentei despedir-me de Edmund:

- Amor, estou indo...
- Para onde?- perguntou, feliz. Então notou que eu realmente não estava legal:
- Guria, você está bem?
- Hein? Hãn? Não...acho...que....não...
- Quer que eu peça para parar?

Uma luz me havia sido lançada! Havia como parar aquela coisa antes do tempo estipulado por nosso algoz! Fiz que sim com a cabeça e quando o barco passou pelo mordomo Edmund gritou a ele que parasse, mas nada aconteceu. A coisa continuava e o fim era inevitável. Em um ímpeto de coragem, reuni todas as minhas forças e gritei ao mordomo:

- PARE ESSE BARCO, AMOR !!!!

Sim, eu chamei o homem de amor. No auge do meu delírio, naquele momento de insanidade eu chamei o mordomo de amor. Quase morrendo, vendo a vida deixar meu corpo lentamente, comecei a rir, insandecidamente, afastando de mim toda a credibilidade que eu ainda julgava ter. O barco começou a parar e eu não sabia se ria ou respirava, ao menos morreria feliz. Edmund também ria, ainda preocupado, sem saber minha real situação de saúde e sem saber se eu tinha mesmo me apaixonado pelo mordomo por ele ter me proporcionado tão fortes emoções.

Com o barco parado consegui me arrastar até o lado de fora, em segurança. Pobre Edmund, não pôde aproveitar completamente sua geringonça preferida do parque de diversões. Mas ele me assegurou que divertiu-se durante muito tempo, principalmente enquanto achava que eu estava fazendo todas aquelas caretas de propósito, antes de perceber que era sério.

A Roda Da Morte

Tentando ainda me fazer de forte, disse que estava tudo bem e que queria ir à Roda-Gigante (já havíamos comprado os ingressos). Edmund não queria ir, com medo de que eu passasse mal. Imagine! Eu, passar mal em uma roda-gigante?? Impossível!!! Ninguém passa mal em uma inofensiva Roda- Gigante...

Ainda ventava horrores. Esperávamos nossa vez de entrar e estranhei o operador frear com tanta vagarosidade o brinquedo. "Ele faz isso para dar mais emoção" tentou explicar-me Edmund, ao que o operador comentou, falando consigo mesmo: "droga, não dá mais para frear isso direito!" Perguntei-lhe o que acontecera, ele me explicou que estava começando a chuviscar e que o atrito entre a máquina e o pneu que a freava estava diminuindo.

Não muito tranqüila com aquela resposta, sentei com Edmund em uma das cadeiras da roda, quando ela parou. A cadeira, em formato de xícara, parecia solta e ao ser balançada pelo vento dava-me a impressão de que viraria e nos lançaria ao chão a qualquer momento. Comecei a esverdear, agarrei-me em Edmund e garanti que estava tudo bem. E realmente estava, mas certamente melhoraria assim que eu pudesse colocar os pés novamente no chão.

Nunca havia dado tanta importância ao chão em toda a minha vida. Estranho, a Roda-Gigante, meu brinquedo preferido em parques de diversão na infância, atrás apenas do Trem- Fantasma (no qual eu ia para rir), parecia naquele momento uma máquina tenebrosa, pronta a me jogar a qualquer momento nos braços da morte. Segurei todas as pontas do meu vestido, imaginei-o sendo agitado pelo vento até enroscar-se nas ferragens daquela coisa e me prender, esmagada, como em um moedor de carne.

Ao contrário do que Edmund acha até hoje, não mantive os olhos fechados, precisava ver o que estava acontecendo para me defender, saber para onde pular caso a geringonça não conseguisse parar se a chuva aumentasse. Depois ele me perguntou da paisagem. Bem, quanto a isso não posso dizer nada, não sei se aqueles borrões eram a cidade ou algum delírio alucinatório de minha mente adrenalinizada.

Finalmente pudemos descer. O chão. Que maravilha! Edmund perguntou se eu estava bem. Oras, é claro que eu estava bem, estava com os pés no chão! Não estava bem antes, presa por uma haste metálica entre o céu e a terra. Agora estava ótima!! Não fosse uma terrível dor de barriga (alergia à adrenalina) que me acometeu momentos depois eu diria até que o passeio foi divertido.

Finalmente o final de semana havia acabado e enfrentamos algumas intermináveis horas em um engarrafamento na estrada de volta à cidade. Lindo engarrafamento, ótimo final de semana, pude então dar mais valor a tudo o que tenho em meu dia-a-dia e que costuma me passar despercebido. É claro, foram dois dias inteiros, aconteceram outras coisas naquele lugar, mas nenhuma mais digna de nota do que os acontecimentos relatados aqui. Estar à beira da morte nos revela a beleza da vida.

Dormi durante todo o caminho de volta e passei a semana inteira exausta, ainda processando, lentamente, a adrenalina no sangue e a ventania no cérebro. Mas, estranhamente, sobrevivi para contar a história. Ainda bem.