sexta-feira, janeiro 16, 2004

Perseguição Implacável

Não sou nem um pouco ciumenta, muito pelo contrário, mas se tem uma coisa que me deixa frustrada é não poder apagar o passado de Edmund, mesmo que não signifique mais absolutamente nada para ele. Taí uma coisa com a qual ainda não consegui lidar. Vocês sabem o quanto Edmund é cativante, inteligente, interessante, extremamente sedutor (ainda que ele não saiba disso) e bonito. Sim, Edmund é bonito. Se não for bonito, ao menos disfarça muito bem. Eu o acho bonito, enfim.

Por ele ser tudo isso, durante suas andanças por este mundo, por outras dimensões e instituições psiquiátricas, esse moço de olhos verdes arrebatou diversos corações (e outros órgãos não menos importantes, como fígados, estômagos, cérebros, pulmões...) de moças assanhadas (e de algumas comportadas também). Perto de minha casa habita uma dessas moças. Edmund me mostrou tal criatura um dia desses, despretensiosamente, a pedido meu, certamente julgando tratar-se de mera curiosidade. Não deixa de ser.

O problema é que eu só via a tal guria de costas. Devo dizer que ela tem bastante cabelo. A bem da verdade cheguei a pensar que da cintura para cima ela fosse só cabelo (prometo desenhá-la aqui assim que me sobrar um tempinho), precisava vê-la de frente para saber se, afinal, ela tinha ou não um rosto.

Dias e dias, noites e noites, semana após semana procurei encontrá-la e nada. Passei duas noites em claro atrás de uma árvore em frente à casa dela, mas só o que consegui ver foi aquele terrível emaranhado de fios negros (estou sendo cruel, emaranhado de fios é meu cabelo, o dela é bem soltinho, o que, devo dizer, piorava a visualização) que cobria-lhe o rosto.

Disfarcei-me de moita, colando uma infinidade de folhas por meu corpo e, agachada, a segui durante algumas horas até que ela entrou em um prédio e de lá não saiu mais. Provavelmente saiu quando, sem perceber, cochilei entre um coaxar e outro do sapinho que saltava entre minha folhagem.

Estava magra, pálida e abatida, olheiras imensas, profundas e escuras adornavam meus belos olhos vermelhos, os quais eu mal conseguia manter abertos. Começava a tremer, mal conseguindo sustentar meu corpo sobre minhas pernas. Precisava ver o rosto daquela lambisgóia, mas não conseguia dar mais nenhum passo.

Esgotadas minhas forças, via a vida esvaindo-se de mim a cada respiração ofegante. Concluí, em um breve momento de lucidez, que ela não valia tamanho sacrifício. Concluí ou minha cama concluiu por mim, não sei. Desabei sobre o colchão e desacordada fiquei por três noites seguidas.

Acordei no quarto dia, revigorada, tomei um longo banho, comi um reforçado café da manhã e notei que minhas belas (e modestas) feições tornaram a ocupar meu rosto, elas e róseas bochechas tomaram o lugar daquele aspecto cansado que ostentara durante quase um mês.

Novamente bela e com todo o frescor de minha esfuziante juventude, resolvi passear despreocupadamente. No meio do caminho notei que alguém me seguia. Ao olhar para trás reconheci aquele cabelo. Era a Góia (Apelido carinhoso para Lambisgóia)!! Deixei que passasse à minha frente e a segui até o ponto de ônibus. Lá fiquei cerca de meia hora e descobri que ela tinha rosto!!! Ou ao menos parte dele, já que não vi o lado esquerdo.

Parecia não ser feia, embora tenha feito uma expressão assustadora ao perceber-se observada por mim. Geralmente as mulheres têm sensores apuradíssimos que permitem identificar em menos de um segundo todos os pontos críticos e possíveis qualidades de suas concorrentes.

Infelizmente, não possuo tal capacidade. Por isso não me resta outra alternativa senão olhar fixa e demoradamente a criatura até gravar o maior número de informações que conseguir em meus registros de memória. Tal recurso porém, exige o total abandono de qualquer tipo de discrição ou sutileza.

Consegui gravar os seguintes tópicos: ela tinha uma pele esquisita, braços roliços, não era gorda, mas tinha clara tendência a engordar, olhos pequenos, sobrancelhas mal desenhadas, cabelos tingidos de preto, finos, lisos com discreta ondulação nas pontas, bem tratados e com balanço. É mais baixa do que eu e não estava feliz em me ver.

É uma pena ter conseguido gravar tão pouca coisa, mas achei que fosse o suficiente para identificá-la das próximas vezes que a visse. Finalmente ela pegou o ônibus e pude continuar minha caminhada. Não pretendia seguí-la de novo, embora precisasse vê-la outra vez para saber se ela possui os dois lados do rosto.

Seguindo para o supermercado hoje pela manhã deparei-me com outra moça, de características parecidas, porém com a mesma calça com a qual eu vira a garota de costas enquanto estava com Edmund. Era ela!!! Seguira a pessoa errada ontem, agora sim estava frente a frente com a Lambisgóia!!!

Pele branca, um pouco mais magra que a outra, nariz afilado, boca pequena (argh! Ela é bonita!!!) e...óculos escuros. Tenho certeza, agora sim, de que era ela!! As outras características todas batem, exceto uma coisa: essa estava de óculos escuros. Imensos óculos negros que cobriam-lhe os olhos e as sobrancelhas.

Bem, ao menos agora sei que ela tem os dois lados do rosto. Mas ainda preciso encontrá-la novamente para saber se tem olhos e sobrancelhas, só por curiosidade. Depois, prometo, a deixo em paz.