quinta-feira, dezembro 04, 2003

Atendendo a pedidos...

Em belo dia do final de Julho último, estava eu lixando minhas unhas na sala de casa quando ouvi um barulho na varanda. Parecia o estrondo da queda de um saco de cimento sobre o gramado. Corri para a janela e pude ver um corpo em meu jardim. Apavorada, procurei as chaves e, trêmula, abri a porta da frente. Estranhamente não havia ninguém ali, o tal corpo havia desaparecido.

Após tão amedrontador ocorrido, coloquei minhas sandálias e resolvi sair de casa. Passei algumas horas perambulando pela vizinhança até resolver meditar um pouco em uma praça que fica a duas quadras da minha residência. Ainda atordoada, sentei-me no gramado, observando as crianças que brincavam, os pombos sendo alimentados por velhinhos, a menina que brincava com o cachorro, o mendigo conversando com o banco da praça, a mulher que....mendigo conversando com o banco da praça? Olhei de novo. Sim, parecia o corpo que eu vira em meu jardim!

Olhei melhor. Sujo, machucado e com a roupa rasgada. Apesar do estado deplorável, dava para perceber que não se tratava de um mendigo qualquer (nem de um mendigo especial). Aproximei-me, ainda um pouco receosa.

-Com licença, moço...ham...estou atrapalhando alguma coisa?- Ele ergueu os belos olhos (escondidos pelos óculos espatifados)
-De maneira nenhuma, estava aqui tentando convencer este banco de que não há motivo algum para ele não me deixar dormir aqui.

Tão impressionada fiquei com aquela bela voz (meu coração disparou e eu perdi o fôlego por alguns instantes, caindo sentada sobre o banco) que ignorei a resposta, julgando ser apenas fruto de uma mente espirituosa. Não podia sequer supor que aquele indivíduo realmente conversasse com os móveis. Continuamos a conversa, eu, cada vez mais absorta naquela voz, naqueles olhos e naquelas belas palavras, mas tomando o cuidado de não me iludir. Tanto cuidado tomei que a pulsação voltou ao normal, respirei com facilidade e consegui ouvir o que ele estava dizendo e compreender com clareza.

A princípio acreditei que ele tivesse sido assaltado, atropelado, coisas do tipo, mas logo ele me disse que voltara da Dimensão-Zeta (não faço idéia de onde seja isso, mas ele me disse que estava vindo de lá) e se esfolara todo ao tentar passar por uma brecha no portal que estava quase se fechando. Nesse momento comecei a desconfiar de que tal gozador poderia ser, efetivamente, doente. Ri de minha suposição e continuei a viajar pelas palavras do então desconhecido. Contou de certa vez em que virou suco e me explicou a razão de tal fato. Falou de uma certa pessoa que o fez acreditar em certas promessas que ela jamais poderia cumprir e mostrou certo alívio por poder conversar tantas coisas comigo.

Sensibilizada, perguntei a ele se gostaria de tomar um banho, colocar uma roupa limpa (tinha algumas peças que meu irmão deixara em minha casa) e comer alguma coisa.

-Antes - disse ele - gostaria de pedir-te uma coisa.
-Estando ao meu alcance...
-Possui um computador?
-Sim, tenho um em minha casa, por quê?
-Acesso à internet, microfone, placa de som, coisas que possam colaborar comigo?
-Claro- eu ri- meu equipamento é bastante amável.

Estranhei que antes de comer, tomar banho, consultar um médico, fazer curativos ou executar qualquer outra atividade que aliviasse um pouco seu desconforto, ele tenha preferido utilizar um computador com acesso à internet. Então ele me contou que mantinha um blog, me explicou que havia dezenas de pessoas que o esperavam há pouco mais de dez dias e que não podia deixar de escrever. Seu braço, porém, estava muito dolorido e ele, imensamente ferido e cansado.

Sugeri que, ao invés de escrever, falasse e o indaguei sobre alguma forma de fazer isso. Lembrando-se de já ter visto esse tipo de recurso em algum outro blog, resolveu então gravar a lendária mensagem de voz que a maioria de vocês já ouviu. Depois, aí sim, tomou um banho, ajudei com os curativos, comeu alguma coisa e desmaiou em minha cama.

Loucura deixar um estranho entrar em minha casa, comer minha comida e dormir em minha cama, mas só quem já olhou nos olhos de Edmund pode saber o porquê de eu ter feito isso, pode entender o porquê de eu tê-lo deixado entrar em minha casa, entrar em minha vida daquela forma tão pouco sutil.

No dia seguinte, já recuperado, disse a mim que precisava voltar para casa, seus medicamentos haviam acabado e ele temia pelo que pudesse acontecer. Não me explicou quais eram esses medicamentos, mas disse que eram essenciais para a sua sobrevivência. Imaginei que ele tivesse alguma cardiopatia ou coisa que o valha. Não, eu não tinha notado que ele era lunático, achei apenas que era diferente, mais sensível do que a maioria dos homens que eu conhecera, com um senso de humor fora do normal e uma inteligência incomensuravelmente absurda. Disse que me arrumaria e o levaria até sua casa. E assim fiz.

Conversamos muito no trajeto, contando a minha vida, lhe falei sobre minhas experiências como estagiária de uma clínica psiquiátrica e ele comentou que já estivera em uma. Imaginei, em minha ingenuidade, que, filantropo, tivesse visitado os pobres internos e levado alimentos, dinheiro, roupas, agasalhos, remédios, ou, simplesmente, afeto para tão necessitadas pessoas. Passei a admirá-lo ainda mais por tamanho gesto humanitário. Despedi-me após anotar o número de telefone que ele tão gentilmente me cedera.

Apesar do meu profundo interesse, só iniciamos um relacionamento (primeiro de amizade, para, poucos dias depois, transformar-se em uma história de amor bem melosa) dia dois de Agosto. No último dia de julho eu entrei em contato e, como ele não estava, deixei um recado em sua caixa de mensagens, dizendo que estava feliz por ele ter se recuperado.

No primeiro dia de Agosto foi a vez dele deixar um recado: queria conversar comigo. Na manhã seguinte, a luz do sol o chamou e felizmente ele atendeu às súplicas do belo dia (por insistência do Cabide, ele diz), por conta disso acabamos nos encontrando em outra praça, por um quase acaso. Descobrimos nossas afinidades, os textos, os desenhos, as músicas, o coração e tantas, tantas outras coisas.

Aos poucos descobri que estava diante de um lunático. Antes de apavorar-me com tal situação, decidi ajudá-lo, percebi que ele não poderia ficar sozinho, à mercê dos coelhos, cobras e aracnídeos perigosos, notei que por diversas vezes ele esquecia de tomar os medicamentos e decidi eu mesma ficar responsável por tal tarefa. Desde então Edmund não pode viver sem mim e eu também não consigo conceber minha existência sem ele (embora, por diversas vezes, ainda tente), sem seu modo limpo e suave de ver a vida, sem sua tranquilidade, sem as intermináveis horas que passamos conversando sobre tudo e sobre nada, sobre qualquer coisa e absolutamente todas as coisas.

Descubro-me a cada dia menos normal do que pensava ser, a cada maluquice do Edmund que compreendo, descubro uma nova Josephine, analisando menos e sentindo mais. Pois bem, pediram a nossa história. Não podem reclamar da melosidade das palavras. Não há outra forma de contá-la e nem assim ela fica tão bonita quanto é, de verdade.

1 Comments:

Anonymous Anônimo said...

vc jura que faz isso por mim ? que lindo ...

mas tem uma cosia que não é justa .... vc sempre do meu lado (escondidinha né) e eu sempre com saudades.

2:00 AM  

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