terça-feira, setembro 21, 2004

Persistência

Se me faltassem todos os talentos do mundo, ainda me restaria um, que me difere de todo o resto da humanidade: nunca conheci criatura humana tão estabanada. Acabo de conseguir a proeza de derramar meia garrafinha de iogurte sobre um caderno aberto. Felizmente aqui onde eu moro não existem formigas, ou estaria seriamente encrencada.

Não que formigas sejam uma lenda neste lugar, mas elas não costumam ser vistas pelos cômodos deste apartamento. Dizem que formigas não moram em apartamentos altos, talvez tenham preguiça de subir as escadas. Dizem também que quanto mais alto o apartamento, menos chance de ter mosquitos passeando por ele. Talvez mosquitos também não gostem de subir escadas.

Só existem formigas e mosquitos em apartamentos altos se eles forem persistentes e pacientes o suficiente para subir de elevador. O problema é que formigas e mosquitos jamais conseguiriam apertar o botão do elevador, por isso teriam que contar com a sorte.

Primeiro, teriam que saber ler. Ao menos identificar os números. Caso contrario teriam esperado horas e horas por alguém que chamasse o elevador para eles, entrariam na engenhoca e desceriam no primeiro andar, ou no subsolo, onde poderiam ter ido usando suas próprias patinhas (ou asinhas, no caso dos mosquitos).

Porém, sabendo identificar os números altos, deveriam contar, novamente, com a sorte, esperando que um incauto morador de apartamentos altos resolvesse entrar no elevador e descer em seu andar inacessível a pequenos insetos sobre patinhas. Então, teriam de contar, outra vez, com a sorte, ou melhor, com a falta de sorte do indivíduo que então abriria a porta a eles e seria o único morador do andar a contar com a companhia exclusiva de um mosquito e um punhado de formigas (porque, convenhamos, elas deveriam vir em grupos ou não adiantaria muita coisa. A menos que fosse uma formiga-ermitã, uma sábia formiga buscando encontrar-se consigo mesma, loge da balbúrdia dos formigueiros e perto da morte certa. Não seria muito inteligente).

Convenhamos que é muito mais fácil subir pelas escadas ou pelas paredes, do lado de fora, e pegar o primeiro apartamento que vier à sua frente, o que deve explicar a preferência desses insetos por andares mais baixos e casas térreas ou sobrados. Ao menos não imagino mosquitos fazendo vôos arriscadíssimos e formigas escalando prédios altíssimos e fazendo rapel.

A menos que sejam insetinhos olímpicos, com espírito esportivo muito forte, querendo ultrapassar seus próprios limites para alcançar vitórias jamais imaginadas pelo micro-mundo em que vivem. Duvido. Não sei, mas desconfio que não haja nada semelhante a substâncias como adrenalina e endorfina correndo no interior de seu exoesqueleto. Acredito que apreciem uma vida mais rotineira, algo mais tranquilo e regrado, sem grandes emoções e sem viver perigosamente.

Nesse aspecto acho que me identifico com essas formigas e esses mosquitos. É, eu sei, ando fazendo comparações estranhas, que colocam em dúvida minha boa auto-estima, primeiro um dedão do pé e agora, formigas e mosquitos. Mas tudo tem seu contexto.

Não gosto de viver perigosamente, de grandes emoções, sou alérgica a adrenalina, quase morri no barco viking, não saio à noite, detesto multidões e tenho pavor de altura.

Algumas coisas de mim eu guardo lá dentro, coisas que quero fazer, mas que não me sinto à vontade de contar para a humanidade. Coisas óbvias. Quero um dia subir as escadas e escrever meu formigueiro no vigésimo quinto andar. Quero ir de escada, para não ser vista, para ter certeza de que chegarei no vigésimo quinto andar, ainda que demore um pouco mais do que se eu pegasse o elevador.

Quem olha para mim pode ver só uma formiga, daquele tipo que quer viver sua vida de formiga e ser deixada em paz. Mas olho para cima, vejo aquelas janelas pequenas, sei de formigas que conseguiram, planejo em segredo cada degrau. Não devo chorar sobre o iogurte derramado, a mancha ficou no caderno, para que eu não me esqueça, para que eu não perca de vista jamais o vigésimo quinto andar.

PS: Edmund, hoje é um dia especial. Não vou te lembrar e nem dizer o que se comemora neste dia. Sim, é uma forma de torturar-lhe até que você se recorde e, quem sabe, compre alguma coisa gostosa para a gente comer e comemorar. Hoje é um dia especial. Todos os dias são especiais, ainda que não pareçam, mas este, além de ser, parece. :)

PS2: Ando com problemas de conexão. Espero consertá-los em breve, para poder voltar a passar mais tempo por aqui, respondendo comentários.

PS3: A propósito, me perdoem o longo tempo sem posts. A partir de hoje este blog entra nos eixos.

PS4: Não poderia deixar de agradecer, ainda que ligeiramente atrasada, a homenagem que o M16 fez para a gente no blog dele. Desçam a barra de rolagem quando chegarem .

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Comentários deste post:

"Nossa, como você escreve bem.De onde você tirou esta idéia de usar um blog como um único e verdadeiro diário?"
aryadne 09.21.04 - 8:26 pm

"Olá... Aqui estou eu novamente após um turbulento período. Vejo que continua escrevendo de forma magnífica. Quanto às formigas, talvez elas não queiram subir aos andares mais altos porque sabem que encontrarão lá um apartamento como qualquer outro. Talvez uma delas tenha conseguido a muito tempo atrás, e percebido que a quantidade de açúcar num apartamento não é diretamente proporcinal à distância deste do solo. E esta formiga ensinou as outras, de forma que isto é ensinado hoje na escola das formigas."
Flip-flop 09.21.04 - 8:50 pm

"Formigas sábias asssoviam o que o sabiá sonhava em saber assoviar. Mas não estou certo quanto à existência delas."
André 09.22.04 - 1:45 pm


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