sexta-feira, dezembro 12, 2003

Estranha

Acordei sem vontade de escrever neste blog. Não falei sobre isso com Edmund. Acordei sem vontade de falar com Edmund também. Acordei ligeiramente melancólica e acho que nem deveria acordado, se era para ficar assim. Tendo que reunir pedaços de mim espalhados pela casa. Quanto mais pedaços recolho, mais despedaço minha alma.

Não mais do que de repente acordei sem vontade de escrever. Como se eu não fosse digna deste blog, como se ele não fosse meu, como de fato não o é. Às vezes fantasmas sobrevoam como bruxas e não sei se a mulher com a vassoura veio mesmo fazer faxina. A cada camada de poeira que ela diz querer tirar, mais sujeira espalha pela casa.

Foi Edmund quem a contratou, eu disse que não precisava. Ele não acha que eu deva executar deveres domésticos nesse estado, explico: pessoas que precisam catar seus pedaços não podem varrer pedaços. Correm o risco de varrer a si mesmas. Não quero colar pedaços, quero guardá-los na caixa. E temo que a velha bruxa fantasma resolva misturá-los a outros pedaços e assim eu não consiga guardar todos os pedaços e muitos (ou alguns) permaneçam espalhados por aqui.

Quero todos os pedaços, todos. E ela quer que eu deixe alguns pelo chão. Meus pedaços quero espalhar pelo carpete, todos meus, todos seguros, que nenhum fique para trás, me chamando de volta, não quero. Mas ainda me falta coragem para catar os pedaços. São muitos, pesados, revirar pedaços de mim e me sentir inteira.

Acho que tomei alguma coisa estranha no café da manhã. Será possível que troquei minhas vitaminas por um dos medicamentos do Edmund? Tem um, eu o peguei para jogar fora, vidro muito parecido, uma das reações adversas é confusão mental e também alucinações. O médico suspendeu. Como pode Edmund ter que tomar uma medicação que causa alucinações e outras que as combatem? Se retirar o medicamento que as combate viverá alucinado, mas se retirar o que as causa não precisará tomar os que as combatem. Ou suas alucinações independem de medicação, não sei bem, deveria falar com o médico, mas acho que não estou em condições.

Hoje acordei sem condições, sem condições de nada. A velha vassoura de piaçava atrás da porta, escondi a vassoura da bruxa, fazendo aquela velha antipatia para que a visita vá logo embora. Aí ela não foi porque não achava sua vassoura, esqueci desse detalhe. Tive que revelar onde ela estava e a velha bruxa continua a rondar. Não será ela a impedir que eu cate os caquinhos que tão cuidadosamente espalhei pelo chão.

Os caquinhos, os pedacinhos de nós que sempre deixamos pelo caminho, com pessoas que amamos, em nossas coisas, nossas cartas de próprio punho e tantas outras coisas que testemunham o quanto vivemos, nossa história, nossas raízes....a velha bruxa que ronda nossas mentes e nos impede de voar. Não se preocupem, se troquei os medicamentos o efeito deve passar em breve...breve quando?

Tem algo de estranho em minha cabeça. Edmund disse que aquele negócio que ele falou que ia dizer não é uma coisa ruim, mas reiterou que só falará daqui a alguns dias. Talvez isso, talvez isso me deixe um pouco mais confusa e nervosa, catando caquinhos e mandando a tal bruxa ir catar coquinhos na esquina.